Por
Samuel Duhamel
Um
cidadão europeu do século XXI tem pelo menos 1001 razões para não ler a obra de
Rui Barbosa. Ela data de mais de 100 anos e aparece, em primeiro lugar, como
ultrapassada e sem mais liame com o mundo contemporâneo. Além disso, é escrita
num português incrivelmente complicado e, sejamos francos, se a vida é curta
demais para aprender o alemão, ela não dá tempo para mergulhar no trabalho
erudito de um jurista nascido quando Louis-Napoléon Bonaparte era presidente da
França.
Mas,
enfim, a vida nos reserva surpresas. De vez em quando boas. Em 2009, o acaso -
ou, mais precisamente, a indicação do jornalista Claudio Leal - me levou a uma
visita à Fundação Casa de Rui Barbosa, no bairro de Botafogo, no Rio de
Janeiro. O meu amigo, suficientemente perverso para me indicar duas semanas
depois uma peça do diretor Zé Celso - leitor ocidental em curta estada no
Brasil, evite de qualquer maneira possível assistir a um espetáculo dele. Se
tiver a obrigação moral de ir, traga um travesseiro confortável, não esqueça de
apertar o cinto das tuas calças e verifique o estado da sua braguilha. Dicas
imperdíveis.
A casa colonial de Rui, convertida num museu frequentado hoje por centenas de pessoas a cada dia, é um milagre para os olhos. Quase nada foi modificado. Sente-se no coração do século XIX. As grandes peças austeras nos levam às noites frias do inverno em que Rui escrevia os seus discursos à luz das velas. O que se destaca no edifício é a imensa biblioteca do antigo jornalista. Ela abriga mais de 37.000 livros que, de acordo com a lenda, foram todos lidos por Rui. Quando eu disse ao guia que era impossível ler tantos livros numa vida só, pelo simples fato de que Rui viveu menos de 37.000 dias, ele respondeu com a convicção dos que nunca duvidam: "Leu sim!" Eu estava convencido.
Visitar
um museu desse sem comprar um livro do autor em questão é uma falta de gosto,
claro. Decidi assim me oferecer a Antologia de Rui Barbosa, que apresentava a
vantagem de vulgarizar os pensamentos de Rui... em somente 112 páginas. De
volta ao Hexágono, comecei a leitura. Cento e doze páginas, quase 7 meses de
sofrimento cotidiano.
Me
explico: após um ano passado na Bahia em 2004 e duas estadas de quase um mês em
2006 e 2011 no Brasil, considero o meu nível na língua de Camões como bom, até
muito bom.
Mas
falar o português sem dificuldade não basta para entrar no universo do Rui. O
cara é capaz de tudo, inclusive às vezes do pior. Página 12: "Deus, que
fizestes estas montanhas, o globo que as aguenta, esses mundos que nos cercam,
esses céus que nos envolvem, que esparzis as estrelas do firmamento e as flores
da terra, que resplandeces na santidade dos justos, e trovejais na consciência
dos maus, que semeais na inocência das crianças, e colheis na experiência dos
velhos, derramai a vossa misericórdia sobre esta casa, sobre aqueles que a
povoam no trabalho, sobre este enxame de esperanças, que aqui continuamente se
renovam, sobre essa vergôntea pequenina de minha alma, que aqui fica entregue aos
vossos apóstolos, mas ainda mais sobre os que hoje os deixam, galardoados com
os primeiros graus do saber, para se afrontar com outras lidas."
Não
acredito em Deus. Hoje, entendo por quê.
O
meu amigo Claudio, que é polido, apesar da perversidade, me disse um dia,
surpreso do meu interesse súbito por Rui: "Cuidado! Ele escreve num
português bem empolado!" Eufemismo... agressivo. Rui, que eu chamava
secretamente "Ruim" durante as minhas noites de desespero total (ou
seja, a partir da pagina 13), escreve tão bem que ultrapassa a nossa tolerância
à dor intelectual. Ou seja, ler Rui é um sofrimento total, integral, contínuo e
sem fim.
Mas,
graças a ele, me dei conta que por vezes é preciso sofrer. Pois a riqueza no
vocabulário de Rui, no final, só é a prova da nossa incúria. Muitas vezes,
quando fazia a tradução das palavras portuguesas que não conhecia, obtinha
palavras francesas que... não conhecia também, não.
De
"espadachim" até "valetudinário" sem esquecer
"sicário", "vesânia","sicofantismo" ou
"pasquinada"... Passei quase tanto no dicionário que no livro
propriamente dito. Mas, no final, Rui consegue o impossível: sublevar as nossas
almas. Escreve coisas complexas sobre temáticas complexas, mas logra no final
de cada capítulo dar-nos calafrios.
Sobre
a pátria: "A pátria não é ninguém, são todos, e cada qual tem no seio dela
o mesmo direito à ideia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema,
nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o
povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos
antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade."
Sobre
a liberdade: "Vós os que vos tendes entregado às artes, às letras, às
ciências, não esqueçais que de todas elas, a mãe é a liberdade."
Sobre
a paz: "A paz!! Não a vejo. Não há, como não pode existir, senão uma, é
que assenta na lei, na punição dos crimes, na responsabilidade dos culpados, na
guarda rigorosa das instituições livres. Outra espécie de paz, não é senão a
paz de servidão, a paz indigna e aviltante dos países oprimidos, a paz abjeta
que a nossa índole, o nosso regime essencialmente repelem, a paz que humilha
todos os homens honestos, a paz que nenhuma criatura humana pode tolerar sem
abaixar a cabeça envergonhada."
Além
de um grande poeta, Rui foi também um grande orador. Rei na arte da
improvisação, escrevia também discursos profundamente comoventes que tocavam o
cérebro e o coração.
A
homenagem pública que ele fez na sede da Academia Brasileira de letras, ao sair
o féretro de Machado de Assis em 1908, é a prova incontestável. Numa mistura de
doçura, dignidade e sinceridade máxima, consegue um elogio que fica nas
memórias um século depois: "O homem que quero celebrar aqui, não é o
clássico da língua, não é o mestre da frase, não é o árbitro das letras, não é
o filósofo do romance, não é o mágico do conto, não é o joalheiro do verso, o
exemplar do rival entre os contemporâneos, da elegância e da graça, do aticismo
e da singeleza no conceber e no dizer; é o que soube viver intensamente da
arte, sem deixar de ser bom."
Mas
Rui não se considerava como um artista. Antes de tudo, ele era um simples mais
ardente patriota. Consagrou a sua vida ao seu estado natal, a Bahia, ao seu
pais, o Brasil, e a uma certa ideia do humanismo. Deputado, senador, ministro,
candidato à presidência da Républica, ele sempre defendeu as suas convicções
com uma abnegação infinita. Nos seus maiores combates, os do Abolicionismo, da
promoção contínua dos direitos individuais e da paz internacional, brilhou pela
capacidade de convencer os céticos e os pessimistas. A claridade dos seus
pensamentos e a força da sua inteligência - “a mais poderosa máquina cerebral”
do país, como escrevia Joaquim Nabuco no livro “Minha formaçao” - lhe deram uma
estatura internacional. Coautor da Constituição da Primeira República
(1889-1930) com Prudente de Morais, ele foi também delegado do Brasil na
conferência da paz na Holanda em 1907, onde ganhou o apelido de “Águia de
Haia”, graças nomeadamente ao sucesso da sua teoria vanguardista de “igualdade
das nações.”
Germanófilo,
anglófilo, hispanófilo e francófilo, ganhou várias distinções fora do seu país,
tal como, por exemplo, as insígnias de Grande oficial da Legião de Honra das
mãos de Paul Claudel em 1918.
Cento
e doze paginas, quase 7 meses de sofrimento cotidiano... A hora de fechar pela
última vez a Antologia de Rui Barbosa, estou aliviado e satisfeito. Aliviado,
pois, até que enfim, vou poder voltar às leituras mais superficiais e
comestíveis. E satisfeito porque lendo este pequenino livro, sei que entrei nas
entranhas de um dos paises mais apaixonantes do mundo contemporâneo, pela
profundeza da sua história, pela inteligência do seu povo e pela diversidade
das suas paisagens. Profundeza, inteligência, diversidade. Ler Rui Barbosa, o
poeta do século XIX, é compreender as riquezas do Brasil do século XXI.