7.9.06

Nelson Rodrigues, o poeta da bola

Precisei de muito tempo para saber se ia escrever um artigo sobre Nelson Rodrigues na língua de Molière ou na de Camões. Finalmente, decidi redigi-lo no mesmo idioma de Rodrigues, que comentava o futebol como Pelé, Jairzinho ou Rivelino tocavam a bola: com graça, elegância e eficiência. Seus comentários eram mais que o retrato de um simples jogo de futebol. Quando Nelson falava da pelota de couro, a filosofia não estava longe. Uma filosofia doce que milhões de pessoas entendiam. O que ele dizia era o reflexo do Brasil da época (50-70). De uma certa maneira, Nelson era o seu país. Ouvi-lo falando do bandeirinha irresponsável ou do goleiro imbatível era entender o "jeito de ser" do brasileiro. E digo mais: o mérito dele consiste na compreensão vanguardista de que o futebol e Brasil eram dois amantes de um casal eterno.

O negócio parecia inconcebível quando o Uruguai derrotou o escrete canarinho, num Maracanã lotado, na Copa de 50. Naquele tempo, o Brasil era uma "terra de vira-latas", um país onde o futebol não se impunha como esporte e religião. Mudou rápido: as gerações douradas de 58, 62 e 70, as do "príncipe etíope de rancho" Didi, do Mané Garrincha ou do "rei crioulo" Pelé, trouxeram a luz. Essas seleções auriverdes deram ao brasileiro uma nova imagem de si mesmo. A confiança e o orgulho substituíram o medo e o complexo de inferioridade. Nelson ousou afirmar que os sucessos magníficos do Brasil futebolístico ajudaram o país a se constituir como nação. Uma análise óbvia e incontestável à leitura de À sombra das chuteiras imortais.

Claro, o Nelson tem também defeitos, notadamente o de acreditar que o povo brasileiro é um povo eleito, melhor do que os outros por essência. Às vezes, o comentarista esportivo previligiou a paixão subjectiva à análise imparcial. Em 1958, escreveu depois do jogo Brasil-França (5-2): "O árbitro comportou-se como um larápio. Não houve, em toda a história da Copa do Mundo, um roubo mais cristalino e cínico. Tivemos que fazer 3 gols para que valesse um". Eis a verdade: os "Bleus" de Kopa e Fontaine jogaram a partida inteira com nove jogadores... Naquele tempo, os substitutos não existiam e dois franceses estavam machucados. Mas a ma-fé do Nelson não é nefasta: pemite entender o espírito do tempo.

Talvez o melhor mérito de Nelson Rodrigues seja o de transformar o futebol em teatro: os jogadores são atores, o campo um palco, a bola o enredo... e ele o encenador mágico. O heroísmo, a tristeza, a honra, a vida e a morte: com Nelson Rodrigues, o futebol atingiu os requintes de uma obra-de-arte.

Samuel Duhamel

Nelson Rodrigues nasceu em Recife, Pernambuco, em 1912, e morreu no Rio de Janeiro em 1980. A maior parte da sua produção literária foi publicada originalmente em jornais como O Globo e Manchete Esportiva, onde escreveu de 1955 a 1959. Ele era um virtuose, um artista, um estilista do comentário. Via o futebol com "os olhos de um iluminado", definiu o jornalista Armando Nogueira. Consagrou-se como dramaturgo mas também escreveu romances, volumes de crônicas e memórias, tais como O casamento, A vida como ela é, O óbvio ululante, A coroa de orquídeas e À sombra das chuteiras imortais.

Palavras aladas, as melhores frases de Nelson Rodrigues:

- Brasil – União Soviética (2-0), 15/6/58, em Gotemburgo (Suécia): "O Garrincha foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin."

- Botafogo – Fluminense (2-1), 10/7/58, no Maracanã: "Ontem, só houve em campo um nome, uma figura, um show: Garrincha. Didi, Zagalo e Nilton Santos pertencem à miserável condição humana. Garrincha não. Garrincha está acima do bem e do mal."

- Flamengo – Olaria (8-0), 22/8/58, na Gávea : "Depois do jogo, qualquer paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade."

- Brasil – Chile (4-2), 13/6/1962, em Santiago (Chile) : "Garrincha foi a maior figura do jogo, a maior figura da Copa do Mundo e, vamos admitir a verdade última e exasperada: a maior figura do futebol brasileiro desde Pedro Álvares Cabral."

- O Globo, 4/6/70 : "E Gerson ? Quanta gente o negou? Quanta gente disse e repetiu: ‘Não tem sangue! Não tem coragem!’ O vampiro de Dusseldorf, que era especialista em sangue, se provasse o sangue de Gerson, havia de piscar o olho: ‘Sangue do puro, do puro, do escocês’."

- O Globo, 6/6/70 : "Amanhã jogaremos a Inglaterra. Eu sei que a Inglaterra é grande. Mas nos somos maiores, porque somos Brasil, imensamente Brasil, eternamente Brasil."